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Não Sei a Fórmula

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Esses dias eu estava aplicando uma prova de Modelagem do Mundo Físico na turma de um colega que estava doente. Como é uma disciplina que eu ministro e o conteúdo é mais ou menos coordenado entre todos os professores, eu sabia bem o que os estudantes viram em aula, ao mesmo tempo em que eu não conhecia os alunos. Li as questões da prova do o meu colega1 e elas avaliam bem as competências e habilidades propostas na ementa.

O que me marcou foi a dificuldade de alguns alunos com a ideia de não ter um formulário com as fórmulas de juros compostos ou da relação entre ângulos e comprimentos de um triângulo. Numa disciplina que tem Matemática Básica e Modelagem como pré-requisito e em que eles tiveram aulas específicas e práticas sobre esses assuntos.

A disciplina se chama Modelagem do Mundo Físico, a ideia é justamente modelar: se não veio a fórmula dos juros compostos, a ideia é tentar reconstruí-la. Se não veio a fórmula que dá o cateto oposto ao ângulo de 15 graus de um triângulo retângulo cujo cateto adjacente é 1 metro, um bom começo é desenhar um triângulo. As competências e habilidades avaliadas na prova envolvem justamente criar modelos de situações reais para poder tirar informação deles. Depois de uma hora, não tinha nem um triângulo desenhado na prova do aluno.

Na semana seguinte, estava eu aplicando prova para a turma de Cálculo Diferencial e Integral 1 e a primeira questão dizia que uma certa função dava a posição de uma partícula e pedia a velocidade e a aceleração2. Um aluno perguntou qual a fórmula da aceleração. Veio-me à mente este texto, que eu já estava rascunhando.

Isso me fez pensar, mais uma vez, na forma mecanicista em que somos treinados no ensino básico: estudar pra passar na prova para passar de ano, para poder estudar e passar na prova e passar de ano, ad nauseam. Até chegarmos ao ensino superior e, como observado há 70 anos pelo Feynman em sua visita ao Brasil, os que se mostram mais competentes dominam os cálculos, as fórmulas, a teoria, quando se deparam com a necessidade de imaginar e lidar com situações que envolvem esse conhecimento, retornam apenas silêncio e hesitação. Por quê? Porque a educação bancária traz resultados facilmente mensuráveis através de métricas-chave de performance pelos stakeholders: aprovações nos vestibulares/ENEM, por exemplo, que são ótimos para popular as propagandas da escola/cursinho no ano seguinte, ou para a avaliação anual de desempenho dos servidores da escola pública.

Um exemplo dessa educação bancária veio de uma amiga que é professora particular e, em fevereiro, se viu na tarefa de ajudar um estudante de nono ano a resolver questões complexas que envolviam forças, alavancas e polias. Quando um exercício desses cai no meu colo (e no dela), a primeira coisa que vem à mente é fazer um diagrama de forças e calcular as resultantes etc. Para um sistema de polias, isso dá um trabalho absurdo. E estudantes do nono ano mal tiveram contato com dinâmica e força. Mas a apostila trazia a solução: uma fórmula pronta: para n polias móveis e m polias fixas, levantar uma força resistente P demanda uma força movente F e lá estava a fórmula. Era isso. Um parágrafo, um desenho e uma fórmula para cada caso. E quinhentos nomes diferentes para o estudante catalogar e tentar adivinhar qual fórmula usar. Nunca mais na vida dele ele vai ter que lidar com força movente e força resistente. Mas para passar na prova padrão feita para sacar o que foi depositado com a apostila é perfeito.

Num contexto mais familiar ao leitor: tem toda aquela família de movimentos: MRU, MRUV, MHS, fórmulas de posição, velocidade e aceleração pra cada um deles, aí tem a fórmula de Torricelli para casos muito específicos. Depois, em Cálculo, você precisa calcular a aceleração de um corpo se deslocando de acordo com uma função arbitrária e não tem vovô ateu que te ajude.

Mas, como eu insisto todos os semestres para meus alunos, o “objetivo” agora não é mais resolver 90 questões em 5 horas, mas sim desenvolver autonomia intelectual e dominar as competências e habilidades trabalhadas no curso para aplicação em suas respectivas áreas de atuação, não apenas no contexto do curso e de questões produzidas artificialmente com o objetivo de serem rapidamente avaliadas.

Temos aí uma incompatibilidade: No ensino superior, esperamos autonomia dos estudantes, o objetivo é ensinar a pensar e criar conhecimento partindo do corpo de conhecimento existente na área de estudo, não apenas mecanicamente reproduzir o que já é conhecido, sem crítica e sem uma análise profunda. Mas o processo seletivo para ingresso nesse ambiente seleciona3 justamente aqueles capazes de reproduzir mecânica e acriticamente as soluções mais rápidas para questões feitas para serem corrigidas rapidamente. Certamente um indivíduo competente, com autonomia de raciocínio, capaz de resolver problemas aplicando suas competências e habilidades de forma holística e efetiva, com domínio de todos os passos do processo, terá ótimo desempenho no vestibular e na universidade, mas todos nós docentes contamos nos dedos das mãos anualmente os ingressantes com essas características. Em sua grande maioria, os estudantes apresentam conjuntos de competências e habilidades que, embora eficazes no vestibular, são disjuntos daqueles que buscamos desenvolver em estudantes de ensino superior.

Um efeito colateral disso é que as disciplinas de primeiro semestre acabam tendo um forte papel de adaptação (ou efetiva seleção) dos estudantes ao contexto universitário, especialmente nos cursos de exatas — em que, ironicamente, passamos os primeiros semestres mostrando como não existe nada exato nessa área. Acabamos, como docentes de ensino superior, nos vendo na posição de arrancar ideias pré-concebidas e imprecisas (ou erradas) do ensino básico, para cultivar a forma de raciocinar e ligar ideias necessária para criar conhecimento, o que é fortemente tolhido no ensino básico.

Existem questões que estão fora da nossa alçada na posição de professores do ensino superior: desde o formato do vestibular/ENEM/SISU, passando pelas expectativas dos pais e responsáveis, os incentivos perversos gerados pelas métricas educacionais, a disparidade entre a busca por graduações e as vagas no mercado de trabalho etc. O que podemos fazer como docentes do ensino superior é zelar pela excelência dos nossos egressos — ao custo de métricas menos favoráveis nas planilhas do MEC (taxa de evasão, número de formandos por docente, etc.) — de fato ensinando as competências e habilidades esperadas de engenheiros, físicos, bacharéis em Ciência e Tecnologia: pensamento independente, resolução inovadora de problemas, domínio das ferramentas disponíveis (cálculo, física, integração ciência-tecnologia-sociedade). Cada docente ao longo do curso tem seu papel: alguns trabalham as disciplinas ditas “duras”/“hard”: cálculo, física, química; outros vão abordar as competências mais fundamentais para poder efetivamente aplicar o conhecimento (disciplinas inadequadamente conhecidas como “soft”/“moles”): práticas de leitura e escrita em português e inglês, Ciência Tecnologia e Sociedade, Meio Ambiente, Inovação, Negócios Tecnológicos. Cada uma tem seu papel na formação de um profissional completo e autônomo. Não adianta saber integrar uma Equação Diferencialferencial Parcial Linear a Coeficientes Variáveis, se não consegue observar as dores de alguém e reconhecer uma linha de raciocínio que leve a uma soluçào que depende da EDPLCV que ele precisa resolver. Analogamente, não faz muito sentido um indivíduo iniciar uma start-up que se propõe a resolver um problema cuja solução pode ser provada impossível em duas folhas de Cálculo 3.

Pessoas competentes são pessoas com pensamento autônomo. São pessoas que têm à sua disposição um corpo de conhecimentos e habilidades que podem ser aplicados aos problemas com os quais se depararem ao longo da vida (profissional ou não). Um “girador de manivela” não deveria precisar de ensino superior. Se estamos no ensino superior, devemos formar pessoas que são mais que giradores de manivela. E é por isso que a ideia de “fórmula” tanto me inflama.


  1. Um estilo de prova bem diferente do meu, mas isso fica para depois ↩︎

  2. Efetivamente, pedia a primeira e a segunda derivadas da função dada, já que a velocidade é a derivada (taxa de variação) da posição e a aceleração é a derivada da velocidade. ↩︎

  3. “Seleciona”, pois no caso particular da nossa graduação, o ingresso é bastante amplo e isso reduz a seletividade do ENEM/SISU. ↩︎